segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Acordei que sonhava


Série "Sonhos"
Marc Chagall "La Danse"

Agora eu só ouço o barulho dos meus passos secos enquanto caminho nesse lugar úmido e estranho. Umidade e estranheza: um resumo da vida? Quem sou eu para responder: só um entre tantos. Só um.
Por hoje sei que caminho e meus pés pisam em coisas vivas, quentes, pulsantes e essas coisas, cada uma delas – e são milhares – guardam mundos insondáveis e fascinantes.
Faço parte destas coisas todas: sou como elas e esta certeza me assusta e me atrai.
É....?
Há um mundo sob meus pés, um mundo ao meu redor, sou parte de tudo e sigo. E o barulho dos meus passos ecoa no escuro da noite, eu não disse, mas é noite; uma noite escura mas clara; uma noite fechada em seu negror mas com clareiras de lua aqui e ali, há espirais de luminosidade se alongando no meio do mato, por entre as frondosas árvores e em meio aos caminhos que aos poucos, vão se abrindo.
É tão bonita esta noite. Eu nunca quis tanto viver como estou querendo agora, enquanto caminho dentro dessa noite. Sou eu, andando comigo; eu seguindo comigo mesma como quase nunca sigo...e por isso eu não me assusto; eu não temo nada...Nada.
Quando cheguei à praça antiga em frente à casa enorme e cinza, percebi que havia pessoas, muitas; inúmeras, várias e percebi que eu conhecia todas aquelas pessoas. Cada uma delas guardava uma memória minha, algo do que fui estava com aquelas pessoas ou, muito do que fui estava com aquelas pessoas. Havia um banco dentro do coreto, havia borboletas gigantescas e aves coloridas e as pessoas passando de um lado para outro e eu apenas me sentei no banco para vê-las passar. Eu apenas as observava...aquela mulher, eu a conheci há alguns anos e sua loucura – eu me lembro – feria como faca afiada a alma de todos os que conviviam com ela; mas agora , ela sorri. Ou talvez ela ainda esteja com a faca afiada entre as mãos, mas eu não a temo; sei que ela nunca poderá me ferir; não aqui nesse lugar, aqui não...

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

A casa universal

Da série "Contos Antigos"

Todo mundo já nasce com esse sentimento. É como o branco do olho e a certeza da morte. Assim também, como as realidades quase palpáveis e indiscutíveis, o que ele sabia toda manhã, o que o olho enxergava logo cedo, o que sentia na alma, a finitude; assim as montanhas ao redor da casa. Não eram azuis, eram lilazes, já viu cor mais esquisita para uma montanha? Pois bem, essas eram lilazes. Era a cor da terra vermelha, misturada ao roxo dos cascalhos e ao marrom dos pedregulhos. De longe eram instigantes, aquela beleza imperfeita que torna o mundo um lugar cheio das incertezas que nos fazem acordar todos os dias achando que vale a pena...acordar todo dia.
Ele levantava lá pelas cinco da manhã. Ele já havia viajado por países tão distantes que ninguém mais acreditava que ele havia mesmo viajado para países tão distantes.
Suas histórias ocupavam, agora, o lugar do fantasioso, do inventado: o território da memória. Ninguém o levava a sério e nem ele fazia questão que o levassem. Era um velho cheio de manias e estava quase feliz vivendo na paisagem ilimitada da sua memória como se entre os destroços de uma velha ferrovia ou de uma grande nau abandonada.

Ana Vargas - Janeiro de 2009

domingo, 11 de janeiro de 2009

O primeiro dia


Nada havia sido definido então. Nada havia para ser dito ou sacramentado e até o mundo ao redor das coisas sabia disso. Aquela parcela invisível e mítica que envolve pessoas vivas ou mortas, animais vertebrados e invertebrados, móveis novos ou antigos, casas abandonadas...
Então, para quê – me respondam – ela deveria olhar para tudo procurando algo se o que ela procurava fazia parte das coisas, era a matéria das coisas e pulsava como um coração que bate da maneira que lhe cabe bater?
Nada havia para ser procurado, dissecado ou verificado.
Nada.
Nada.
Depois da chuva rápida que refrescou a tarde e umedeceu as plantas, o céu acinzentado ganhou uns ares de mar. Como se um oceano de nuvens frescas inundasse naturalmente o teto da cidade.
Foi, como direi, tão bonito esse primeiro dia que parecia até, que era a primeira vez que algo fantasticamente belo acontecia ao mundo....

Ana Vargas - 09/01/2009

Da série "uma foto para um texto; ou um texto para uma foto".

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

AZUL ou Enjoy the silence

Essa paisagem me lembra "enjoy the silence"
do Depeche Mode :


All I ever wanted
All I ever needed
Is here in my arms
Words are very unnecessary
They can only do harm
Enjoy the silence...

domingo, 4 de janeiro de 2009

O céu no chão (e a liberdade?)


Um outro mundo parece existir dentro da poça d'água formada pela chuva. Há céus e árvores lá dentro desse mundo, parece um mundo sonhado, um mundo fabuloso como aqueles das histórias de antigamente.
Esse mundo é reflexo do mundo urbano que existe lá em Belorizonte, Praça da Liberdade; a liberdade talvez exista apenas nesse céu azul e ela boia lá no fundo da poça d'água de depois da chuva como um mito, um sonho.
A liberdade é fabulosa e talvez só exista lá.
E, enquanto isso... a Faixa de Gaza continua sob o bombardeio de Israel nesse primeiro domingo de 2009... Homens matando homens: nada mudou no novo ano e nunca mudará.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Para saudar 2009 sem tanto otimismo ou pessimismo; apenas com um pouco de poesia, alguma lucidez e sim - a sempre necessária e sempre escassa - esperança.



Passagem do Ano


O último dia do ano não é o último dia do tempo. Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida. Beijarás bocas, rasgarás papéis, farás viagens e tantas celebrações de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral, que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor, os irreparáveis uivos do lobo, na solidão.


O último dia do tempo não é o último dia de tudo. Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens. Um homem e seu contrário, uma mulher e seu pé, um corpo e sua memória, um olho e seu brilho, uma voz e seu eco, e quem sabe até se Deus...


Recebe com simplicidade este presente do acaso. Mereceste viver mais um ano. Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos. Teu pai morreu, teu avô também. Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte, mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo, e de copo na mão esperas amanhecer.O recurso de se embriagar O recurso da dança e do grito, o recurso da bola colorida, o recurso de Kant e da poesia, todos eles... e nenhum resolve.


Surge a manhã de um novo ano. As coisas estão limpas, ordenadas. O corpo gasto renova-se em espuma. Todos os sentidos alerta funcionam. A boca está comendo vida. A boca está entupida de vida, a vida escorre da boca, lambuza as mãos, a calçada. A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.(Carlos Drummond de Andrade)