“...só é meu o país que trago dentro da alma” - Marc Chagall
Violinistas no telhado, gatos com cara de gente, vacas e amantes que rodopiam por céus sempre coloridos, cenas da vida interiorana da velha Rússia, mulheres sorridentes parindo filhos rosados; flores, músicas, vida!
A vida fragmentada em cores, sonhos fantásticos e infinitas possibilidades, assim é o mundo de Marc Chagall ou melhor dizendo: assim é uma parte, talvez pequena, mas profundamente instigante, do mundo de Marc Chagall.
Chagal nasceu na aldeia de Vitebsk, na Rússia, em 1887 e morreu em 1985, aos 97 anos. De família grande e humilde, desde criança, fascinava-o a vida cotidiana repleta de cenas rotineiras: o trabalho estafante do pai que era estivador (“Tudo acerca de meu pai me parecia enigma e tristeza”); da mãe, dona de uma pequena mercearia (““ “Se tenho feito quadros é porque me lembro da minha mãe...”) e do tio Neuch, imortalizado por ele nos vários quadros em que há famoso violinista no telhado e a quem adorava seguir em viagens para compra de gado (“Como ficava contente quando me deixava ir na carroça aos solavancos”).
Descendente de judeus hassídicos – assim como a maioria dos habitantes de Vitebsk – cresceu entre cantos e adorações a Deus, em meio à alegria das celebrações religiosas de seu povo e, certamente, estas particularidades de sua infância contribuíram para tornar cada pintura em retrato de tempos feitos de êxtase, poesia, certa melancolia e alguma saudade.
Tudo envolto em cores vivas e intensas; como se cada pincelada fosse uma tentativa de reter o vivido.
Em cartaz no Brasil, a exposição O Mundo Mágico de Marc Chagall: O sonho e a Vida, é, só pela riqueza do acervo, evento obrigatório para quem aprecia arte. Dividida em 7 partes, cada uma apresenta uma faceta do mestre: na série Lês Ames Mortes (Almas Mortas), por exemplo, Chagall baseou suas gravuras na literatura de outro mestre (das letras): o escritor russo, Nikolai Gogol; na série Fábulas de La Fontaine, os textos do francês Jean de La Fontaine, foram a inspiração perfeita para os simbolismos de Chagall. A Bíblia também o inspirou e várias parábolas estão presentes numa série de gravuras. Há ainda gravuras baseadas na literatura grega - Daphnis e Chloé – e aqui, vale ressaltar o empenho de Chagall que viajou à Grécia para captar a luminosidade das paisagens gregas. Esse fato talvez explique toda a força e pureza que trespassa as suas obras de Chagall. Todas, não importa se pinturas, gravuras ou esculturas, reforçam a busca pela o lirismo e o encantamento de sua arte. Ao desenhar as fábulas de La Fontaine, ele parece ter captado a essência de cada história e, sem rodeios, a verdade contida nas palavras do escritor resplandece.
Em tempos de moral discutível e das tantas permissividades cometidas em nome da ética, por exemplo, lembrar as lições de etiqueta moral presentes em histórias como A raposa e a cegonha ou o Velho, o menino e a Mula são uma boa maneira de perceber a atualidade (e necessidade) destes temas tão caros a todos nós. Nas gravuras de Chagall, a moral salta aos olhos e nos deixa perplexos quando nos lembramos, por exemplo, de certos acontecimentos recentes da política brasileira...
A grande qualidade de Marc Chagall reside talvez no fato de que toda a riqueza e o colorido de sua obra, todos os detalhes oníricos e fantásticos de cada uma de suas telas (cada quadro é literalmente, um mundo repleto de simbolismos), não encobrem - ao contrário, revelam com vigor - a real realidade: esteja ela presente na aldeia em que nasceu, em Paris ou nas nos romances e fábulas. Chagall era mestre em tornar visíveis sentimentos e emoções. Assim a morte, a tristeza, o amor e a faina diária; os embates da fé nas parábolas bíblicas e as revelações filosóficas que a literatura grega nos legou; tudo isso se expressa de forma que, acima de tudo (e para além de julgamentos artísticos ou críticos da arte); faz com que nos sintamos confortáveis como os seres humanos contraditórios e imperfeitos que somos. Podemos ser o que quisermos – e em tempos de patrulha moral, quase emburrecedora, isso não é um alento? – ao entrarmos com Chagall no país repleto de lembranças e memórias de sua alma. E esta é uma experiência inesquecível que nos devolve nossa tão frágil humanidade.
E há ainda o amor, sentimento fundamental para o pintor; impulso que o levou a tentar apreendê-lo em obra dedicada à esposa Bella (“Á medida que os anos iam passando, o amor dela tornava-se palpável nas minhas pinturas...”), à França (“ A França é a minha verdadeira casa...”) e enfim, à própria vida (“Amar a arte é a própria vida”).
De origem humilde, judeu em um tempo em que tal condição significava holocausto e morte; Marc Chagall celebrou a vida em cada quadro. A riqueza de sua pintura, o humor, o lirismo, a nostalgia, as maravilhas e os pequenos milagres ocultos em uma realidade quase sempre árida; reacendem a fé no homem, apesar de tudo. Parece clichê – e certamente é – mas nesse começo de século no qual nos perdemos em debates em torno do consumo excessivo que massacra o homem e a terra (e vice versa) ou ficamos emparedados em congestionamentos monstro nas nossas cidades tão modernas (mas que não nos acolhem e sim nos excluem), apreciar a obra de Marc Chagall é caminhar em doces e belas paisagens de sonho, lugares nos quais podemos exercer nossa humanidade sem o temor que as tantas teorias – do consumismo, do psicologismo, das auto-ajudas execráveis e limitadoras - nos impõem diariamente. Por nos legar tamanha obra ou por nos devolver de forma plena, como um presente há muito esperado, nossa árdua – mas apesar de tudo bela – condição humana; vale a pena conhecer de perto, toda a riqueza dos sonhos de Chagall, uma celebração da vida – paradoxal e estranha – mas ainda assim, bela.
A exposição “O mundo mágico de Marc Chagall O sonho e a vida.” está em cartaz na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, até 4 de outubro.
Para saber mais acesse http://www.casafiatdecultura.com.br/