quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Para saudar 2009 sem tanto otimismo ou pessimismo; apenas com um pouco de poesia, alguma lucidez e sim - a sempre necessária e sempre escassa - esperança.



Passagem do Ano


O último dia do ano não é o último dia do tempo. Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida. Beijarás bocas, rasgarás papéis, farás viagens e tantas celebrações de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral, que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor, os irreparáveis uivos do lobo, na solidão.


O último dia do tempo não é o último dia de tudo. Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens. Um homem e seu contrário, uma mulher e seu pé, um corpo e sua memória, um olho e seu brilho, uma voz e seu eco, e quem sabe até se Deus...


Recebe com simplicidade este presente do acaso. Mereceste viver mais um ano. Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos. Teu pai morreu, teu avô também. Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte, mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo, e de copo na mão esperas amanhecer.O recurso de se embriagar O recurso da dança e do grito, o recurso da bola colorida, o recurso de Kant e da poesia, todos eles... e nenhum resolve.


Surge a manhã de um novo ano. As coisas estão limpas, ordenadas. O corpo gasto renova-se em espuma. Todos os sentidos alerta funcionam. A boca está comendo vida. A boca está entupida de vida, a vida escorre da boca, lambuza as mãos, a calçada. A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.(Carlos Drummond de Andrade)